sábado, 28 de janeiro de 2012

Eu, jovem precário

De modo a também eu poder dizer é a crise, vou passar a ir de metro para a universidade. Por isso e porque a minha reforma (leia-se mesada) também quase de certeza que não dá para pagar as despesas. Vou passar a entrar numa estação que não digo qual é por causa dos perigos da internet, mas que é a Alameda, e a sair noutra que também prefiro não dizer, mas que é São Sebastião. Apenas com o Saldanha pelo meio, o percurso é pequeno. E para isso o novo tarifário da empresa quase falida que gere os transportes públicos em Portugal apresenta-me uma solução com um custo mensal de 26 euros, que ainda me dá acesso a mais dois serviços (autocarro e comboio) que não preciso. Considerando que antigamente faria o mesmo percurso por apenas 12 euros, não fiz as contas, mas acho que fico a perder.

O carro passa a ficar estacionado num lugar que noutros tempos já foi grátis, mas que agora é pago a uma empresa que vive do incumprimento das leis que ela própria pretende fazer cumprir. A única alteração no local foi materializada numa caixa que engole moedas e cospe pequenos cartões de papel. Felizmente, depois de uma kafkiana guerra burocrática, consegui obter o selo de residente, pelo que em princípio não vou receber mais nenhuma daquelas multas amarelas, que por acaso até são excelentes marcadores de livros. Mas eu não costumo ler mais do que dois ou três livros de cada vez e por isso não estou interessado em mais multas.

Estou interessado, isso sim, em passar a receber diariamente o Jornal Destak no meu novo percurso. Não tanto pelo jornal em si, mas pelo que o projecto representa. No princípio, o Destak financiava-se de uma forma muito simples: recebia primeiro dos clientes e só depois pagava as impressões. E o negócio foi crescendo. De facto, o que fica é esta ideia de que as coisas, afinal, não são assim tão complicadas. Existe esperança na iniciativa privada. O pior é que, para um jovem precário como eu, o exemplo do estado português nos últimos anos (ou, pior ainda, no século todo) é pateticamente miserável. Vai ter a sua graça, em todo o caso, passear-me pelo espaço público cheio de prejuízos do metro, enquanto leio no jornal as boas novas da expansão internacional do Destak.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O PROCESSO OU O RESULTADO?!

Há muitos anos que intuí que o célebre «Appocalipse Now!» de Francis Ford Coppola só aparentemente é um filme de guerra sobre o Vietname. Esta leitura ficou naturalmente mais facilitada quando descobri que o guião do filme se tinha moldado sobre um clássico da literatura ocidental da viragem do século XIX para o século XX: «The Heart of Darkness», de Joseph Conrad. Assim, também a presente peça não é - ao contrário do que à primeira vista poderá parecer – um artigo sobre futebol.

O livro de Conrad narra a sucessão de obstáculos que Marlowe deve superar, subindo o Rio Congo, ao encontro de Kurtz. No filme de Coppola, Marlowe torna-se Captain Willard (interpretado pelo jovem Martin Sheene), ao encontro de Curtz/Marlon Brando. Na melhor tradição épica do Ulisses de Homero, é mais importante a superação dos obstáculos do que a concretização do objectivo final do herói. Na verdade, uma vez superados os obstáculos, e com o alvo do périplo ao alcance da mão, tanto Marlowe (em Conrad) como Willard (em Coppola) se questionam sobre o sentido de concretizar o objectivo final. A cultura greco-romana transmutava a vida do Homem em metáforas e símbolos: Hércules tinha que vingar numa série de trabalhos para provar que era um Deus. O importante são os trabalhos, ou o objectivo?!

Eça de Queirós elaborou, nos parágrafos finais de «Os Maias», sobre o tédio de quem se desinteressa dos resultados materiais, porque compreende que as coisas finitas não são merecedoras do esforço desmesurado que a raça humana faz no seu sentido.

Ulisses errou 10 anos até regressar a Ítaca. Somam-se aos 10 anos em que tinha estado na Guerra de Tróia. Ítaca era somente o destino final e necessário para aproar o barco – mas aquilo que verdadeiramente interessa é a superação das dificuldades, que evidentemente são a metáfora de vida de todo o homem. O rio que sobem Marlowe e Willard é o verdadeiro curso da sua vida.

Vem isto a propósito do cidadão búlgaro Valeri Bojinov, das censuras e opróbrio que publicamente tem sofrido, a propósito do penalty que falhou num jogo do seu clube. O jogador de futebol desobedeceu, e deve ser punido, quanto mais não seja para exposição pública – de tal modo que os colegas de equipa aprendam pelo exemplo. Até aqui, tudo certo, mas assalta-nos uma pequena dúvida: o jogador teria sofrido as mesmas censuras se tivesse convertido o «penalty», dando a vitória nos minutos finais ao seu clube?! Ou posta a coisa noutros termos: o que teriam feito os dirigentes que agora o censuram em côro se a bola tivesse entrado?! Ou ainda, e finalmente, de modo mais próprio da sociedade neo-liberal que é a nossa: o que importa é o processo ou o resultado?!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Apresentação aos sócios

O convite para escrever neste blog é vago, mas concedo, em prol do ecletismo do painel e porque assim sempre tenho mais uma desculpa para adiar estudos e outros encargos. Numa análise prévia a coisa parece-me segura e com decoro suficiente para escapar à lei de combate à pirataria online. A meu favor, tenho ainda os tempos conturbados em que vivemos: matéria excelente para deambulações do género. E por isso aqui estou, no Portugal Amanhã. A verdade é que este nosso país, os portugueses, a nossa portugalidade, tudo isso, como sabemos, é matéria da mais fina condição para o exercício do humor. Que o humor não seja inócuo é o que me interessa, até porque importa imaginar um amanhã melhor. E o português sempre foi visionário. Posto isto: mãos à obra, não posso prometer golos, mas jogo onde o mister quiser e estou aqui para deixar a alma em campo.

sábado, 21 de janeiro de 2012

O afinamento do cabaz

Entregámo-nos nas últimas duas décadas ao doce exercício de adicionar itens ao nosso cabaz de compras. O mundo capitalista, esplêndido na arte de conceber produtos e serviços que julgamos imprescindíveis, jorrou-nos uma miríade de bens que nos entretemos a comprar ou que nos alimentam a ideia de que um dia os poderemos comprar. Acontece que por um (o)caso de inépcia de governação geral na Lusitânia somos agora forçados por largos anos a um processo gradual e continuado de redução de consumo. Iremos viver o que se pode chamar “uma era de penúria do consumo”.

O fenómeno de penúria, em si, não é grave, conquanto não se desça abaixo do limiar de pobreza. No entanto, viver a penúria poderá ser mais doloroso se tomarmos em conta as falsas expectativas criadas ao longo de muitos anos, o dito esplendor do capitalismo na sua inigualável arte de jorrar novos produtos e serviços, e a ignorância do Homem em se deixar sempre aprisionar ao facto de que é mais doloroso a perda de um bem do que doce fora a sua conquista.

O amargurado de hoje tem casa, menos filhos, todo o equipamento da linha branca, televisão, carro, muitos telefones, muitos canais televisivos, computadores, etc. Os seus avós, de exigências mais modestas, e por isso mais felizes, só mais tarde tinham televisão ou equipamento de linha branca, e só muito tempo depois de casarem podiam aspirar a ter um carro (quando o podiam…, e era 1, não 2). O amargurado de hoje queixa-se de tudo, mas ainda fuma, vai bebendo o seu café fora de casa, janta ainda fora, embora em locais e em doses mais frugais, e vai sempre com muita facilidade drenando 1 euro aqui e ali fruto da incontinência despesista em que se desenvolveu. Como deve fazer confusão para quem tem acima de 80 anos os desesperos dos que se amarguram por não possuírem mais bens, sendo que aquilo que já possuem em muito exceder aquilo que os primeiros talvez nunca sonhassem possuir.

Ainda assim, é verdade que já existe uma redução considerável do consumo. No entanto, esta redução verifica-se mais na quantidade de consumo por item do que na abdicação de alguns itens perfeitamente dispensáveis. Sintoma para quem o repensar do seu status económico mais não é que um impedimento efectivo em trilhar os caminhos mais doces da vida que tomámos como garantidos, e numa recusa na assunção da nova realidade. Ou então sintoma de uma grande inaptidão em compreender a nova realidade que bateu à porta. Seja o que for, com a passagem do tempo, e pela força da realidade, veremos nos próximos tempos fortes remodelações no cabaz de compras das famílias. Da redução das quantidades por item, passaremos a ver redução do número de itens com todas as implicações daí decorrentes ao nível do status económico. E é com este reescalonamento económico que verdadeiramente se afinará o encontro do Português com a realidade.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Há que lhes baixar o rating

Já há tempos manifestei que as agências de rating não são as melhores entidades para avaliar para onde uma economia evolui. Se assim o fosse teriam previsto há muito a crise financeira que se abateu em 2007. Aliás, e devido às suas incorrectas avaliações não será demais dizer que terão a sua boa quota parte de responsabilidade.

O mesmo se passa no presente momento relativamente à zona euro. Parece indesmentível que os países com problemas orçamentais andam a fazer o seu trabalho de casa. É sabido que o tipo de trabalho de casa em curso, e absolutamente necessário, demora alguns anos. Não me enganarei muito se disser que seja coisa para uns 10 anos. Trata-se de uma longa caminhada para a qual não é possível apresentar resultados imediatos. No início somente alguns sinais poderão ser apreendidos.

Ora os sinais são para quem consegue ver filmes. Não para quem é bom a ver fotografias. As agências de rating encaixam-se neste último grupo, não no primeiro. E como tal deverão ser tratadas como tal. Nem mais nem menos.

Acontece que por uma qualquer razão misteriosa as agências de rating são tomadas como verdadeiros experts em matéria de análise financeira, coisa que o seu curriculum não atesta verdadeiramente. Sendo assim, espero que os políticos europeus as tomem na devida medida, e com isso lhes dêem pouca importância. Ora não é isso que vêm acontecendo, o que não ajudando nos trabalhos em curso, ainda tem o condão de criar turbulências.

Uma nota. Precisamente quando os países europeus começam a, conjuntamente, tratar seriamente do seu assunto, e que após colocações elevadas, com muito sucesso, de dívida italiana e espanhola, é muito estranho que as agências de rating tenham dado um ar da sua graça com baixas de rating. Como popularmente se diz, “aqui há gato”. Eu por mim baixo o meu rating a essas agências.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Carne é Fraca


Num debate com o estadista Winston Churchill, um deputado trabalhista propôs que o marxismo tinha afinidades com o cristianismo, na partilha e solidariedade que propõe entre iguais. Numa das suas famosas tiradas parlamentares, Churchill rebateu os
argumentos do socialista inglês, opinando que «o cristianismo diz que «o que é meu é teu», enquanto o socialismo diz que o que «o que é teu é meu».

O problema é que, efectivamente, os sistemas de pensamento político, económico ou religioso - não esqueçamos que durante quase toda a História da humanidade, esses três aspectos se têm achado nas mesmas mãos – parecem assentar no pressuposto da bondade do Ser Humano, quando na prática, como sói dizer-se, «a carne é fraca». O barro de que Deus fez o homem não é famoso, e na primeira ocasião essa deficiência faz-se notar.

Vistos no papel, os sistemas religiosos e políticos oferecem modos de funcionamento em sociedade, códigos de comportamento, distribuição e conservação patrimonial, etc., bastante louváveis – sendo que uma diferença grande do sistema religioso é que nos oferece sempre uma forma de relacionamento com a vida além da morte, e com o castigo ou prémio nesse patamar.

A «economia de mercado» em que vivemos é também um sistema com envolvimentos sócio-políticos e patrimoniais – mas para além de não se interessar de forma alguma pela vida-além-da-morte, também não perde muito tempo com dimensões doutrinais. Enquanto o
marxismo-leninismo propõe um modelo de organização, obviamente utópico («a carne é fraca», como já quedou dito), para a convivência entre Homens, a «economia de mercado» não passa de um regime de funcionamento: a sua dimensão ética é residual, e os interesses residem em «resultados». De um modo geral, pode dizer-se que é um modelo bastante egoísta.

Vem isto a propósito da fuga de capitais do grupo Jerónimo Martins para a Holanda. O seu presidente, à primeira vista, parece um homem bastante íntegro e correcto. Durante anos-a-fio andou a pregar no deserto. Nesta decisão estratégica do grupo, insiste (pela boca do filho e colaboradores) que não se tratou de uma fuga ao regime fiscal português, mas a uma inciativa que visa a sua internacionalização.

«A carne é fraca» e todos os homens mentem, nem que para isso tenham que se esforçar por acreditar nas suas próprias mentiras. Havia, neste caso, que fazer então ao Sr. Soares dos Santos uma 2ªpergunta (a primeira já foi pelo seu grupo respondida…): se o regime fiscal/tributário na Holanda fosse idêntico (ou até mais penalizador…) ao português, teria feito essa mudança?!

Admitamos que Soares dos Santos desistiu do seu país. Que se cansou de pregar no deserto. Cabe-lhe total legitimidade para fazê-lo. Espera-se, em todo o caso, que tenha encerrado a sua fase profética, e que nos liberte a todos das suas sentenças morais. Tinha autoridade para o fazer antes de transferir o domicílio fiscal para a Holanda. No momento que o país atravessa – penso que perdeu agora essa autoridade.

Em jeito de encerramento – uma palavra para a Drª Ana Gomes. Uma socialista equivocada quanto à bondade da raça humana, mas pelo menos uma pessoa que parece séria (o que provavelmente explica que se ache tão isolada no PS). Pudemos ouvi-la na rádio criticando a saída do «capitalista» Soares dos Santos para o estrangeiro e ocorreu-me uma ironia: tendo em conta que o marxismo-leninismo se opõe essencialmente ao sistema capitalista – será que uma socialista como a Drª Ana Gomes não devia estar a festejar a evacuação de um deles, em vez de estar a criticá-la???

As Receitas do Estado

Ainda a propósito de um «post» recente sobre o pagamento de
multas com retroactivo relativos ao Imposto Único de Circulação, ocorre um par
de linhas de pensamento: as políticas de defesa ambiental e sanitária dos
Estados «ocidentais»; o sistema de legislação/tributação do Estado.
Principiemos por este último:
É usual ouvir a expressão, que estará consagrada algures na
legislação nacional, de que «a ignorância
da Lei não assiste ao infractor». A redacção talvez não seja exactamente
esta, mas o espírito da frase é perceptível – até porque já todos a temos
ouvido de modo recorrente. E vem aqui à colação porque me parece não somente de
um enorme cinismo, como também totalmente esvaziada de sentido moral e humano –
tal como acontece com uma boa quantidade de «frases feitas».
Invariavelmente, vem da boca dos advogados, que estão bem
posicionados para a usarem: afinal, a profissão deles é estudar a Lei. Porém,
estar a punir alguém por estar a violar uma regra que manifestamente ignorava,
parece-me de uma perfídia insuportável, e ainda levar em cima com uma frase-feita
como «a ignorância da Lei não assiste ao
infractor» é mesmo a cereja em cima do bolo da hipocrisia. Não me resigno à
idéia de ser tratado como um criminoso por violar uma regra que desconhecia –
ou mesmo por violar uma regra com a qual discordo.
O que pensarão o legislador e o advogado?! Que o cidadão
deve passar diariamente a estudar o Diário da República (e já agora nas suas várias Séries?!...), para
que não lhe escape nenhuma medida que se arrisque a infringir???!!! Não admira
que Franz Kafka tenha dedicado uma parte tão dilatada da sua obra à Lei e ao
Estado. Já para não falar que me parece que o dogma de que «o bem fazer» e a
«Lei» são as duas a mesma coisa me um absurdo. O principal ditâmen da acção
humana devia ser a consciência interiorizada de que estou fazendo a coisa
certa. O que significa que, pessoalmente, tenho muitas reservas em aceitar
passivamente essa outra noção de que «Cumpriu-se a Lei» equivalha a dizer
«praticou-se o Bem». O ex-Ministro Pina Moura, a propósito de já-não-sei que
trapalhadas do mundo empresarial sentencionou qualquer coisa deste tipo: não
existe Moral fora do âmbito escrito da Lei. Ou seja: se foi cumprida a Lei,
então não resta espaço de legitimidade à crítica ética.
Num breve ensaio sobre a obra do escritor judeu
germano-checo da autoria de ???, sugere-se que a Lei não é mais do que a
consagração dos interesses dos mais fortes. Nem que seja de modo inconsciente
(e já não era mau que fosse apenas nesse registo…), o legislador há-de se
projectar nas leis que redige. E assim tem sido, através dos séculos. Fá-lo na
defesa de interesses pessoais, colectivos, patrimoniais, corporativos, etc.,
etc. O que faz admitir, naturalmente, que aqueles que não têm voz activa não se
fazem ouvir. E assim, já se sabe: «quem
cala consente» e «a ignorância da Lei
não assiste o infractor». Quase todas as frases-feitas são estúpidas, e
estas não são excepção.
Já aqui foi escrito: o Estado talvez não seja pessoa-de-bem.
Escrevo «talvez» por pudor e precaução. Num Estado ideal, não devia pairar
sequer uma sombra de dúvida na mente do cidadão – e na mente do cidadão
português, as sombras da dúvida são bem escuras. Se não vejamos - o que é mais
rentável ao Estado: o cidadão que cumpre diligentemente, ou aquele que tem que
pagar multa?! Ou vista a coisa por outro prisma: que consequências haveriam
para a receita do Estado se toda a gente passasse a cumprir, e por esse motivo ninguém
mais pagasse multas?!
Faz lembrar uma ironia que há tempos me ocorreu: o Estado
está preocupado com as emissões de CO2, com a delapidação dos recursos naturais
em hidro-carbonetos, e também com a saúde e os pulmões dos seus cidadãos. O
Estado sabe porém (ou sabê-lo-á o Ministério das Finanças) que entrava em
falência em pouco tempo se todos os portugueses deixassem de usar o automóvel
(e de abastecê-lo com gasolina, de pagar o IUC, IA, etc.) ou de fumar cigarros.
E falia também se todos os portugueses passassem a ler diariamente o Diário da
República e deixassem de incumprir, acabando-se a receita da multa…

sábado, 7 de janeiro de 2012

O Pote

A grande maioria dos Portugueses ainda julga que a riqueza e bem-estar advêm da existência providencial de um qualquer Pote caído do céu, e à nossa inteira disposição, que nos sirva para moldar o mundo como ele deveria ser de acordo com o nosso imaginário. Isto manifesta-se aos mais variados níveis. Na política pensamos resolver os problemas despejando dinheiro (do infindável Pote, obviamente) sobre eles. Ao nível individual pensamos que a existência de um Pote nos garante, por si, a entrada no mundo da felicidade pela capacidade que ele nos dá de realizarmos o nosso ideal de bem-estar material. Ao nível social acreditamos que o Pote permitir-nos-á alcançar a projecção que de nós fazemos quando nos comparamos com aqueles que ansiamos alcançar. E ao nível económico o Pote permite-nos jogar em tabuleiros maiores do que o inicialmente possível.

O Pote tem por isso várias aplicações consoante o domínio onde decorre a acção. A questão não é nova. Por exemplo, a aristocracia, possuidora de inúmeros Potes até há bem pouco tempo, tratou sempre de configurar a atitude dos seus no eterno pressuposto de que existia sempre algures no tempo um Pote que resolveria todos os seus dislates despesistas e desmiolados. Não admira, portanto, que é raro encontrar um aristocrata de boas contas. É que faz parte da sua realidade viver a vida como ela é e sem atentar às disciplinas próprias impostas pela boa gestão, pois a adversidade e os resultados funestos da contínua desorganização seriam sempre ultrapassados por um qualquer Pote que surgisse por aí deixado por um parente.

A um nível burguês e campesino, o Pote foi sempre algo muito apetecível. Era o garante da passagem para o nível imediatamente a seguir da escala social. Assim garantia a delícia de não ter de passar por tantas provações do nível agora imediatamente inferior. Estes Potes, e ao contrário dos da aristocracia, não caiam do céu. Eram sempre o resultado acumulado de uma ou duas gerações acima, e sobre o qual a geração que o gozava dele retirava a sua utilidade para o processo de escalada social. Será porventura o exemplo dos pequenos proprietários imobiliários de Lisboa.

Ao nível do género, sempre foi frequente as mulheres procurarem os homens que lhes garantissem que a descendência não correria os riscos de enfrentar as inconvenientes turbulências financeiras. Assim, homem que possuísse um Pote, ainda que Potezinho, teria sempre a garantia de uma companheira que preteriria as doçuras das suas paixões às vantagens derivadas de um Pote. Aliás, e uma vez no gozo do Pote, os seus amores poderiam ser sempre vividos noutro lado.

Ao nível do país verificamos que Portugal adoptou a filosofia do Pote após o 25 de Abril. Inicialmente estoirou-se grande parte das reservas acumuladas. Depois descobriu-se um Pote bem gordo que vinha de Bruxelas. E por fim arranjou-se um Pote que afinal não o era: o endividamento. Este último afigura-se agora um (pseudo) Pote bem venenoso, como aliás andamos agora a comprová-lo.

Nunca fui muito adepto da teoria do Pote. Provavelmente por nunca ter provado nenhum. Ou se calhar por percepcionar que se nos encostarmos a um isso nos poderá amolecer o espírito e toldar funestamente o nosso nervo, quer pela redução da ideia, quer pela diminuição da energia, e com isso perdermos a vontade da conquista e consequentemente perdermos um pouco da nossa alma.

Creio bem que Portugal amoleceu o espírito nestes últimos 25 anos porque a filosofia do Pote tomou conta de nós. De nós agora nada esperamos pois dos Potes agora perdidos tudo esperávamos. Neste momento, calados pelo temperamento, mas revoltados pelo engano em que incorremos, vivemos uma dor difícil de suportar, mas que fatalmente teremos de ultrapassar. Resta saber como livremente reagiremos, se vulgarmente pelo uso banal do berro como expressão dessa dor, se pela energia e nobreza que nos ilumina o espírito e nos acalenta a alma.

Eça de Queiroz escreveu na “A Capital” a seguinte passagem:

“E um dia, ao jantar, Damião, muito severo, voltou-se para o Pote-sem-Alma:
--- Pote, você todas as noites lamenta a perda da sua prima Felícia, de um modo que nos é insuportável. Você, como homem e como pote, é livre, e não podemos proibir-lhe o queixume. Mas temos direito ao menos a que dê à sua saudade uma expressão literária e nobre. E já que Deus, para usar este termo obsoleto e convencional, lhe deu em gordura o que lhe recusou em ideia, aqui o amigo Taveira encarrega-se de lhe formular, em duas ou três estrofes correctas, um grito de desespero decente. E o Pote há-de ter a bondade de usar, de ora em diante, esta fórmula sempre que o dilacere a dor dessa paixão infeliz”.

Não espero que Portugal finja não ter a dor que o assola. Espero somente que ultrapasse esta fase com nobreza e se prepare condignamente para, ele mesmo, criar o seu Pote e parar de pensar que os Potes caiem do céu.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O que a espuma esconde

Lá por 1995 Portugal acelerou o seu ímpeto consumista que iniciou por volta de 1986. Esse início da criação de uma economia baseada no consumo e na acumulação de dívida escondia a bomba que nos rebentou agora nas mãos. Poucos na altura seriam ouvidos se tivessem a ousadia de dizer que o crescimento em vigor era disforme a nada saudável. A espuma da superfície escondia a movimentação funesta que ocorria no fundo.

Neste momento a espuma que já vemos, e que agora vamos começar a sentir com mais intensidade, esconde movimentações virtuosas que já ocorrem no fundo. Como no primeiro caso, temos muita dificuldade em perceber para onde nos levam essas correntes poderosíssimas. Somos expeditos e bons em perceber o que se passa à superfície, mas provamos ser muito incipientes em perceber as movimentações que vão ocorrendo debaixo da fina camada da superfície.

Segundo o jornal Público “Totalizando 153.433 ligeiros de passageiros vendidos de Janeiro a Dezembro últimos, 2011 foi também o ano em que se venderam menos automóveis nos últimos 12 anos. As vendas caíram 31,3% no ano passado”.

O que isto significa é que, e em paralelo com o crescimento das exportações, nos estamos a tornar numa economia muito mais equilibrada, e consequentemente, a longo prazo, muito mais resistente a perturbações externas, e já agora, muito mais independente. A grande maioria da população tem uma enorme dificuldade em compreender isto, e por isso berra perante a espuma que vê. Mas o que ocorre lá no fundo dá, ao mais atento, a confiança de que tanto precisamos.